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É com grande gosto que participo nesta edição da Money Conference dedicada ao “futuro do dinheiro”.
Penso que, como ponto de partida, temos que ter presente que o dinheiro é uma condição necessária mas não suficiente para gerar condições de desenvolvimento, que contribuem para a potenciação do seu papel de facilitador das transações e de reserva de valor. Também são necessárias instituições, intermediários e mercados financeiros e quadros normativos que permitam otimizar o papel do dinheiro no processo de desenvolvimento económico e financeiro. Por isso, temos que nos interrogar tanto sobre o futuro do dinheiro como sobre as tendências de evolução dos mecanismos de intermediação financeira e dos quadros institucionais e normativos de regulação e de supervisão que lhes são aplicáveis.
Dada a vastidão do tema, limitar-me-ei a três apontamentos: sobre o futuro do dinheiro, sobre o enquadramento institucional e normativo que determina a sua circulação e sobre os desenvolvimentos na intermediação bancária.
Primeiro apontamento: o futuro dinheiro.
Para falar do futuro do dinheiro, temos que colocar uma pergunta seminal: o que é o dinheiro?
Na resposta a esta pergunta, vale a pena revisitar Adam Smith que, no seu trabalho a Riqueza das Nações, identificou o dinheiro como:
Três constatações se impõem de imediato.
Foi a introdução e a generalização do dinheiro que permitiu estender e aprofundar o processo de divisão de trabalho e de especialização económica, fatores que constituíram a base do processo de desenvolvimento económico.
Foi o facto de o dinheiro constituir uma reserva de valor fungível, que permitiu que os agentes económicos detentores de excedentes de recursos os pudessem ceder, diretamente ou através de intermediários, aos agentes deficitários, isto é que careciam de poder de compra, permitindo assim que estes antecipassem decisões de consumo ou financiassem projetos de investimento.
E foi a necessidade de conciliar a desmaterialização do dinheiro com a salvaguarda do poder liberatório e de reserva de valor que impôs:
Isto porque, o poder liberatório de uma moeda desmaterializada assenta na confiança que nela deposita quem a recebe em pagamento, em particular quanto à possibilidade de a usar para pagamentos futuros; e, em segundo lugar, o seu atributo de reserva de valor depende da estabilidade de preços que, por usa vez, depende da orientação seguida em matéria de emissão ou criação de moeda, ou seja da política monetária.
Isto é, a desmaterialização da moeda implicou a criação de um banco central enquanto a estabilidade do seu valor requereu a atribuição ao banco central de um mandato orientado para a estabilidade nominal e a garantia de independência do banco central no exercício desse mesmo mandato.
Assim, na zona euro, onde apenas as notas e moedas de euro têm curso legal, a emissão de moeda e a condução da política monetária são atribuições do Banco Central Europeu, de acordo com o estabelecido no artigo 128.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.
De acordo com a Comissão Europeia, o curso legal das notas e moedas em euros deve implicar: (a) aceitação obrigatória, (b) aceitação ao valor nominal total sem a cobrança de taxas adicionais, e (c) meio legalmente reconhecido para cumprir obrigações de pagamento.
Quaisquer outros ativos convencionados ou aceites como meios de pagamento, como as designadas moedas virtuais ou cripto-moedas, não têm curso legal, dado que não cumprem os requisitos legais para tal, e, por consequência, não podem ser considerados dinheiro ou designados como moedas. São ativos cujo valor convencionado depende da natureza subjacente e/ou da confiança dos agentes que operam no correspondente mercado.
O que significa, primeiro, que o suporte material ou digital de um meio de pagamento não o qualifica como moeda – o que o qualifica são os atributos liberatórios resultantes da lei; segundo, que o futuro do dinheiro não será a multiplicação de emissores desprovidos do poder que garante o curso legal indispensável ao poder liberatório inter-temporal e, por consequência, à salvaguarda da reserva de valor; e, por último, que o poder subjacente a uma moeda desmaterializada tanto sustenta um suporte de papel, o papel-moeda, como um suporte digital, a designada “moeda digital de banco central”.
Segundo apontamento: o papel do dinheiro enquanto facilitador das trocas e da otimização da alocação da poupança depende da natureza e da qualidade do quadro institucional, regulatório e de supervisão do território do soberano que lhe atribui curso legal
A introdução e difusão do dinheiro constituiu uma condição necessária para otimização da alocação da poupança disponível mas não foi uma condição suficiente.
Foram necessários mecanismos de intermediação, isto é um sistema financeiro, que inspirasse confiança aos detentores de ativos monetários e garantisse o reembolso dos montantes intermediados. E, para tal, foi necessário criar e reproduzir ou acentuar uma relação de confiança entre aforradores e intermediários, relação de confiança que não resultou de um processo de geração espontânea mas antes da criação, densificação e aprofundamento de um quadro institucional complexo, que compreende instituições, regras ou normas (regulação) e capacidade para verificar a observância do quadro normativo aplicável (supervisão).
As regras, por motivos de legitimação, são hoje uma responsabilidade do poder político/legislativo. A supervisão, por motivos de eficiência, é uma responsabilidade atribuída a instituições especializadas que o quadro normativo de cada país designa.
Cabe aos reguladores estabelecer quadros normativos que minimizem o risco de não reembolso dos recursos confiados pelos aforradores às instituições de intermediação ou de não cumprimento da contrapartidas ou obrigações futuras. Cabe nomeadamente aos reguladores estabelecer as regras relativas aos níveis de capital que são necessários para os intermediários financeiros cobrirem ou suportarem as perdas resultantes dos riscos da sua atividade de intermediação financeira ou de investimento. Para um dado quadro de valores sociais, estas regras são a pedra angular da confiança nos intermediários financeiros.
Por sua vez, cabe aos supervisores garantir, primeiro, que as instituições que fazem a intermediação da alocação da poupança têm a capacidade de absorção de perdas que está estabelecida nas regras prudenciais; segundo, que o seu o apetite de risco está alinhado com a sua capacidade efetiva de absorção de perdas; e terceiro, que o risco é adequadamente medido e tem em conta o ciclo económico, de forma a contrariar comportamentos pró-cíclicos, quer em termos de critérios de avaliação, de tomada de risco e de fixação de prémios de risco quer em termos de constituição de provisões e de distribuição de resultados; ou, ainda, no caso das empresas seguradoras e dos fundos de pensões, garantir que as reservas constituídas e a natureza dos investimentos asseguram o cumprimento das obrigações futuras.
Terceiro apontamento: fatores determinantes da evolução futura do sistema bancário
Partindo do contexto do setor financeiro europeu, identificarei as mais recentes tendências do setor bancário em Portugal e caracterizarei alguns dos desafios com os quais este se confronta, nomeadamente a resposta ao legado e as implicações da revolução tecnológica e digitalização.
Primeiro desafio: o legado
Ao nível europeu, em 2017, o setor financeiro não bancário continuou a crescer, a tornar-se mais interconectado ou menos fragmentado e a aumentar a sua exposição ao risco. Pelo seu lado, o sector bancário europeu viu a sua rendibilidade recuperar, impulsionada pela melhoria do crescimento económico.
Em linha com a tendência europeia, em 2017, o sistema bancário português apresentou um conjunto de desenvolvimentos positivos, que incluíram o aumento da rendibilidade, a redução significativa do elevado stock de ativos não produtivos, a melhoria da sua eficiência, medida pelo rácio cost-to-income, o reforço da posição de liquidez e o aumento dos rácios de capital.
Contudo, o setor bancário em Portugal apresenta ainda algumas vulnerabilidades, com destaque para os níveis dos ativos não produtivos, de exposição ao soberano e de exposição ao setor imobiliário. Estas vulnerabilidades geram desconfiança sobre a robustez dos balanços dos bancos, não obstante a valorimetria adotada respeitar as regras contabilísticas e prudenciais aplicáveis numa lógica de going concern.
Neste contexto, é fundamental que os bancos portugueses continuem a cumprir os planos de redução de ativos não produtivos submetidos às autoridades de supervisão, e em particular tenham capacidade para responder a um eventual agravamento das exigências prudenciais. Os bancos portugueses não podem correr o risco de ficarem apertados por uma tenaz que resulte de uma maior exigência de redução do volume de ativos não produtivos e de uma menor atratividade de investidores, como efeitos conjugados de uma rendibilidade inferior à média europeia e de um volume de ativos não produtivos superior à média europeia.
A presente melhoria da capitalização das principais instituições, aliada à recuperação da economia portuguesa e ao aumento dos preços do imobiliário, criam um contexto favorável para a continuação da redução do nível de ativos não produtivos, com consequências positivas para a obtenção de financiamento nos mercados financeiros internacionais, isto no preciso momento em que têm de emitir instrumentos passiveis de absorver perdas (MREL).
Compete à gestão dos bancos, em diálogo com os seus acionistas, tomar decisões estratégicas quanto ao dilema que atualmente enfrentam:
O atual enquadramento deve ser encarado pelas instituições como uma oportunidade para continuarem a realizar ajustamentos de caráter estrutural, nomeadamente ao nível dos custos operacionais, que aumentem a sua resiliência e permitam responder melhor aos desafios que se antecipam, tais como, a normalização da política monetária, as crescentes exigências regulatórias e de supervisão e o aumento da concorrência por parte de novas empresas especializadas na prestação de serviços financeiros por via digital (FinTech).
O segundo desafio: o impacto da intermediação por canais digitais
O fenómeno da digitalização nas economias e nas sociedades está a alterar, de forma irreversível, os comportamentos e as expetativas dos agentes económicos em vários contextos. A mutação tecnológica constitui um desafio quase existencial para os acuais intermediários financeiros. Os serviços de pagamento são o sector onde o futuro é cada vez mais o presente.
Os clientes do sistema financeiro procuram cada vez mais soluções tecnológicas com elevada disponibilidade, rapidez e conveniência adequadas às nossas necessidades. E estão cada vez mais exposto à oferta e à atratividade de prestadores de serviços que reúnem estes atributos. O primeiro grande teste vai ocorrer na área da prestação de serviços de pagamento, onde a inovação tecnológica tenderá a ser potenciada pela entrada de novos concorrentes e novos modelos de prestação de serviços.
De facto, a Diretiva de Serviços de Pagamento revista (DSP2), ao introduzir a possibilidade de criação dos serviços de informação sobre contas e dos serviços de iniciação de pagamentos, por prestadores que se consideram ‘terceiros’ na relação entre o utilizador e o seu banco, contribui para a criação de um mercado único para os serviços de pagamento promotor da concorrência, que incentiva a inovação e a mudança.
Sendo as comissões provenientes de serviços de pagamentos uma das principais fontes de receitas do sistema bancário, a entrada de novos operadores e o incremento da concorrência vai limitar o crescimento global das comissões no futuro e a sua partilha com novos prestadores de serviços.
A adaptação bem-sucedida do sistema bancário a este novo paradigma tecnológico e de prestação de serviços requer um elevado investimento inicial em infraestruturas tecnológicas, mas representa também uma oportunidade para os bancos reduzirem de forma estrutural os seus custos operacionais, incluindo a dimensão da sua rede de balcões.
A dinâmica gerada pela DSP2 e a contínua inovação tecnológica abrem espaço para a entrada de concorrentes: para a entrada das chamadas FinTech, que se especializarão em nichos de mercado ou em parcerias com as entidades incumbentes; e para a entrada das BigTechs, empresas da área digital, dotadas de grandes bases de dados, transfronteiriças, e com experiência na sua exploração.
Estas últimas entidades, não sendo do setor bancário, foram ao longo do tempo adquirindo uma vantagem competitiva face aos incumbentes. As suas extensas bases de dados e as suas capacidades analíticas e de processamento de dados, constituem fatores competitivos muito relevantes dado que lhes permite ajustar as propostas de produtos e serviços financeiras ao perfil de cada cliente e assegurar a respetiva colocação por via digital. Embora os bancos tenham a seu favor o (re)conhecimento do público e a capacidade fiduciária acumulada, as suas bases de dados são limitadas geograficamente por comparação com as das empresas tecnológicas à escala global.
Por sua vez, a conceção, o custo de produção e a margem de produtos financeiros destinados ao mass market vai requerer escala para tornar possível uma segmentação final do mercado, para uma diversificação do risco e para uma diluição do custo tecnológico. Por isso, vai estar cada vez mais dependente da oferta dos grandes players. Os bancos locais sem capacidade tecnológica e escala tenderão a trabalhar como redes complementares dos produtores de produtos financeiros, através da colocação de produtos com a marca dos originadores ou com a sua própria marca (num modelo de distribuição tipo de ‘marca branca’), recolhendo e aplicando os fundos de clientes; e, em segundo lugar, como redes de financiamento de empresas cuja dimensão, por ser pequena, requer uma relação de proximidade na avaliação do risco e determina uma maior ponderação da garantia de continuidade de financiamento, associada à relação de proximidade.
Os bancos têm que se reinventar. Na banca de retalho têm que evoluir de um modelo de negócio centrado no produto para um modelo de negócio centrado no cliente, no uso efetivo da informação que têm a seu respeito. Começam a esboçar-se dois cenários: [4]
Estes cenários não são mutuamente exclusivos, e o resultado final poderá bem ser uma combinação de ambos, originando um efeito de concentração dentro do sector determinado pela necessidade de maximizar o aproveitamento de sinergias.
A digitalização comporta igualmente desafios para os bancos centrais e reguladores.
É muito importante que as autoridades competentes não interrompam a dinâmica em curso, mas a enquadrem e assegurem, nomeadamente: (i) a neutralidade da regulação, (ii) o tratamento justo e equilibrado entre incumbentes e novos entrantes, bem como entre jurisdições, (iii) a identificação de novos riscos e desafios colocados e a adoção de iniciativas regulatórias e de supervisão adequadas, e (iv) uma atuação coordenada entre reguladores e supervisores.
Por outro lado, a prática de supervisão terá que se dotar de novas ferramentas de inteligência artificial para não perder o tempo de deteção e intervenção na prestação de serviços financeiros por operadores credenciados e de enquadramento de operadores não financeiros.
Considerações finais
Num contexto regulatório ainda em mutação, e atento o facto de a União Bancária na Europa estar ainda incompleta, é imperativo que o sector financeiro, especialmente o setor bancário, tenha uma visão holística dos desafios que está confrontado, dando-lhe uma resposta atempada e consentânea com o papel que quer desempenhar no sistema económico e social em que opera e, desde logo, garantindo a robustez do seu balanço e a sustentabilidade do respetivo modelo de negócio.
Qualquer que seja a organização do sistema de pagamentos ou de intermediação da poupança do país é fundamental que o funcionamento do sistema financeiro e do mercado de capitais obedeça a critérios de transparência, de tomada de risco, de fixação de prémios de risco, de eficiência e de rentabilidade que garantam a sustentabilidade do modelo de negócio e por consequência a estabilidade do sistema financeiro, condições determinantes do reforço da confiança dos aforradores.
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