Intervenção do Governador Carlos da Silva Costa na Conferência "Banking Summit | Leading into a new era"
06 fev. 2018
Intervenção do Governador do Banco de Portugal, Carlos da Silva Costa
É para mim um grande prazer participar nesta edição do Banking Summit.
O fenómeno da digitalização nas economias e nas sociedades está a alterar, de forma irreversível, os comportamentos e as expetativas dos agentes económicos em vários contextos. Conforme ilustraram as discussões desta tarde, o sistema financeiro não é exceção.
O ano de 2018 é, em muitos sentidos, um ano de verdadeiras transformações com a entrada em vigor de um conjunto de novas diretivas e regulamentos cujo alcance promete revolucionar o sistema financeiro, e, em particular, o sector bancário. Destacam-se a DSP2, a MiFID IIe a IFRS9.
Na minha intervenção de hoje partirei precisamente da introdução da nova Diretiva de Serviços de Pagamento (DSP2) como âncora para o debate sobre as implicações da digitalização no sector bancário.
Muitos estudos têm apontado a DSP2 como o maior desafio à banca de retalho desde a invenção das ATM, vulgo multibanco, há cerca de 50 anos, ao colocar em risco entre 25% e 40% do produto líquido bancário (net banking income).
De facto, a DSP2 contribui para a criação de um mercado único para os serviços de pagamento promotor da concorrência, que incentiva a inovação e a mudança, ao introduzir a possibilidade de criação dos serviços de informação sobre contas e dos serviços de iniciação de pagamentos por prestadores que se consideram ‘terceiros’ na relação entre o utilizador e o seu banco.
Esta abertura a prestadores de serviços que se consideram ‘terceiros’ na relação entre o utilizador e o seu banco abre o espaço para a entrada de novos concorrentes que detêm uma vantagem tecnológica, como as FinTech, e se especializam em nichos de mercado ou que dispõem e operam já com bases gigantes, como a Google, o Facebook, a Amazon e a Apple, e têm experiência na gestão de ‘big data’.
Para os incumbentes, trata-se de um desafio mas também de uma oportunidade. As FinTech não devem ser vistas apenas como concorrentes dos prestadores tradicionais. Também podem ser instituições complementares ou parceiras. Em particular, podem ser instrumentais, ajudando os incumbentes a ultrapassar as condicionantes associadas ao baixo crescimento da atividade e à baixa rentabilidade e, ainda, a restabelecer e reforçar os níveis de confiança e de reputação, postos em causa com a crise financeira de 2007.
De facto, o acesso a novas tecnologias e a utilização de inteligência artificial vão determinar uma transformação do lado da oferta, na medida em que permitem extrair mais informação das bases de dados de que os bancos dispõem. Desse modo, vão permitir uma melhor adequação da oferta das instituições financeiras às necessidades dos seus clientes, quer ao nível do retalho (robo-advice) através da promoção de produtos de crédito ou poupança ajustados às preferências dos financiados ou dos aforradores, quer através da conceção de propostas de investimento e de gestão de património que tiram partido da capacidade de operar com mais produtos e mais mercados e conceber produtos ajustados a perfis mais finos de preferências reveladas pelos investidores (wealth management).
Ao mesmo tempo, vão permitir uma maior adequação do risco do produto ao perfil do cliente e uma maior acuidade na avaliação do risco de crédito. E vão permitir, ainda, uma maior capacidade de gestão do risco e de determinação do correspondente preço, afinando e segmentando a avaliação do perfil de risco dos seus clientes, através do tratamento da informação socioeconómica e de uma visão precisa e atualizada da sua posição financeira com a utilização em larga escala de modelos de credit scoring.
Ao mesmo tempo, os bancos têm de se adaptar a uma nova realidade do lado da procura, confrontados com clientes que procuram soluções flexíveis, personalizadas, imediatas, em qualquer sítio a qualquer momento – ATAWADAC (Any Time, Any Where, Any Device, Any Content) –, reformulando a sua própria oferta.
À medida que novos players totalmente digitais entram no mercado providos de licenças para operar em livre prestação de serviços, começa-se a questionar até quando será necessária uma tão vasta rede de balcões como aquela que ainda caracteriza os sistemas bancários de vários países Europeus.
A resposta a esta questão vai depender do grau de literacia financeira e digital da população, da forma como as diversas gerações valorizam a confidencialidade das suas informações bancárias e da medida em que a proteção de dados seja assegurada.
Na ausência de literacia digital e, em particular, do entendimento das implicações que a maior partilha de informação financeira comporta, os clientes bancários ficam expostos a ações ilegais e fraudes.
Importa, pois, que as diversas instituições, e em particular os bancos, promovam a consciencialização dos clientes bem como os níveis mínimos de literacia financeira e digital para que estes entendam que o aumento de opções e produtos traz consigo um maior grau de responsabilização.
Simultaneamente, as novas possibilidades de tratamento e transmissão de informação vieram dar a oportunidade às entidades que, não sendo do setor bancário, foram ao longo do tempo acumulando grandes bases de dados e experiência no respetivo tratamento automático de grandes massas de informação. Essa experiência garante uma vantagem competitiva face aos incumbentes: as suas extensas bases de dados, capacidades analíticas e de processamento de dados são fatores competitivos que lhes permitem explorar atividades financeiras ajustadas ao perfil de cada cliente.
Embora os bancos tenham a seu favor o (re)conhecimento do público e a capacidade fiduciária acumulada, as suas bases de dados são limitadas geograficamente por comparação com as das empresas tecnológicas à escala global.
Passando o mass market a estar cada vez mais dependente da oferta dos grandes players, os bancos locais tenderão a passar a ser redes complementares de colocação de produtos de ‘marca branca’ e de recolha de fundos sem capacidades tecnológicas nem de escala.
Neste contexto, começam a emergir dois cenários enquanto resultado dos desafios da digitalização com que o sector bancário se confronta:
- Um cenário de inércia, onde os bancos não respondem a estes desafios, e se confrontam com uma compressão das margens e limitação de cross-subsidiation, acabando por se tornar meras plataformas de captação de depósitos e de colocação de produtos, com a criação de valor a ocorrer fora da sua esfera, levando ou a uma progressiva perda de contacto com os clientes, ou a uma incapacidade de os trabalhar de forma autónoma. O conhecimento/contacto transfere-se para gigantes digitais que, já possuindo acesso a vastos conjuntos de informação dos clientes, começarão a focar-se na cadeia de valor do sector bancário, podendo, no limite, originar um efeito de crowding out dos bancos.
- E um segundo cenário, de profunda transformação do sector, em que os bancos internalizam as novas tecnologias, através da aquisição ou do desenvolvimento interno de FinTechs e soluções tecnológicas afins. Neste cenário, os bancos tiram partido da confiança e notoriedade histórica que têm junto dos seus clientes para promover soluções cada vez mais focadas nas necessidades dos consumidores, que lhes permitem capturar novas fontes de receita ao mesmo tempo que reduzem vários custos de funcionamento.
Estes cenários não são mutuamente exclusivos, e o resultado final poderá bem ser uma combinação de ambos, originando um efeito de concentração dentro do sector para criar sinergias.
Assim, torna-se imperativo que a gestão dos bancos ao mais alto nível possua competências digitais suficientes[8] para enriquecer as discussões sobre as implicações para o seu modelo de negócio e a forma de lhes dar resposta.
Num contexto regulatório ainda em mutação, e atento o estado de incompletude da União Bancária na Europa, é imperativo que o sector bancário tenha uma visão holística dos desafios com que se confronta, dando-lhe uma resposta atempada e consentânea com o papel que quer desempenhar na sociedade.
Do ponto de vista de risco, importa notar que embora ainda não existam estudos empíricos suficientes para aferir quais as implicações da digitalização do sector bancário, há quem aponte para a existência de menor volatilidade mas um aumento do risco sistémico (i.e. caudas mais largas) devido ao maior uso de inteligência artificial[9]. Além disso, a extensão da cobertura geográfica promovida pela digitalização e os diversos players em interação colocará desafios renovados à salvaguarda da estabilidade financeira que importará acautelar.
A digitalização comporta igualmente desafios para os bancos centrais e reguladores. A nova arquitetura e os novos modelos de negócio obrigam a uma resposta multidisciplinar dos bancos centrais e reguladores, exigem novas abordagens, recursos e competências, de forma a maximizar as oportunidades e a minimizar os riscos para a sociedade.
Desta forma, é muito importante que as autoridades competentes não interrompam a dinâmica em curso, mas a enquadrem e assegurem, nomeadamente:
- A neutralidade da regulação, eliminando os fatores inibidores da adoção de tecnologias (seguras e eficientes) no desenvolvimento da atividade financeira.
- O tratamento justo e equilibrado entre incumbentes e novos entrantes, bem como entre jurisdições, não colocando em causa a confiança pública na prestação de serviços.
- A identificação de novos riscos e desafios colocados pela disponibilização de serviços financeiros de base tecnológica e a adoção de iniciativas regulatórias e de supervisão adequadas por forma a evitar zonas sombra com menores exigências ao mesmo tempo que se garante a proteção de dados.
- Uma atuação coordenada entre reguladores e supervisores a nível nacional e europeu.
Neste sentido, espero que o Banking Summit se transforme num valioso contributo para ajudar à construção de uma visão tanto quanto possível partilhada sobre os desafios e os benefícios que a transformação digital pode introduzir no funcionamento do setor bancário.
Muito obrigado a todos.