Há documentos que não entregou na comissão parlamentar de inquérito (CPI) ao caso Banco Espírito Santo (BES). Desde logo, um documento interno de 8 de Novembro de 2013 que defendia uma atuação tempestiva relativamente a Ricardo Salgado. Porque é que não os entregou?
São documentos de trabalho e tal como foi transmitido à CPI, os documentos de trabalho não são abrangidos pelo dever de divulgação. O documento em causa faz parte de uma série de reflexões internas que se iniciaram por minha iniciativa em Fevereiro de 2013 a propósito de notícias publicadas na imprensa que visavam determinar se havia fundamentação para aquilo que era publicado e qual a gravidade. Entre Fevereiro de 2013 e Novembro muita coisa se passou e entre Novembro e Abril de 2014 quando o dr. Ricardo Salgado aceitou que não continuaria à frente do banco também muita coisa se passou.
Não era um documento importante?
O que é importante dizer é que aquilo que o documento sugeria, que era prosseguir a reflexão, foi exatamente aquilo que foi feito: primeiro, prosseguir a reflexão sobre os factos que estavam a ser indiciados, segundo, confrontar as pessoas em causa com esses mesmos factos e, terceiro, construir a prova para depois em função da prova saber quais as consequências que se deviam retirar dessa prova. Isso foi feito, foi claramente transmitido à CPI.
As averiguações posteriores levaram o banco a tomar a conclusão que não havia razões para perda de idoneidade de Ricardo Salgado...
Não. Nada disso. A nota foi tida em devida conta e o que as averiguações posteriores permitiram concluir é que havia razões suficientes, primeiro, para não permitir a tomada de funções nos casos em que estavam pendentes pedidos de autorização. E, em segundo lugar, que havia razões suficientes que, ficaram consagradas em Abril de 2014, para exigir ao dr. Ricardo Salgado um plano de sucessão e exigir à família que se afastasse da gestão do BES. E isso está expresso em documentação que foi entregue na CPI.
Estamos a falar de uma nota interna do final de 2013, mas o processo de retirada de idoneidade só se concretizou mais tarde porquê?
O processo de avaliação de idoneidade começou em Fevereiro de 2013. Em Setembro, início de Outubro de 2013, iniciamos uma investigação sobre alguns administradores do Grupo Espírito Santo, porque era no domínio do grupo não financeiro que as questões se colocavam. Em terceiro, em 5 de Novembro de 2013, o Banco de Portugal questionou o dr. Ricardo Salgado, tanto sobre o pagamento do Sr. José Conceição Guilherme no ano de 2011 no montante de 8,5 milhões, como sobre a relação mantida com a Akoya. Esta carta foi respondida pelo dr. Ricardo Salgado no dia 21 de Novembro de 2013 e a partir daí iniciou-se um processo de correspondência, com sucessiva acumulação de informação que nos leva a que em 16/17 de Abril de 2014 o dr. Ricardo Salgado remetesse ao Banco de Portugal as cartas de renúncia aos cargos cujos registos se encontravam pendentes junto do Banco.
Mas porque não retiraram a idoneidade e tiveram de esperar pela renúncia?
Não podia. Há dois acórdãos, o primeiro, do Supremo Tribunal Administrativo em 2005 e o segundo do Tribunal Central Administrativo do Sul, em 2012, e depois um terceiro do Tribunal Central Administrativo do Norte, já depois da Resolução, em 23 de Setembro de 2015, que diziam claramente que a retirada da idoneidade dependia da existência de prévias condenações judiciais. E era necessário que tivessem transitado em julgado.
O Banco de Portugal não tinha forma de retirar a idoneidade a um banqueiro caso ele não tivesse sido condenado e a condenação não tivesse transitado em julgado?
Até 24 de Outubro de Outubro de 2015 era assim. Entretanto foi alterada a lei, dando a possibilidade ao Banco de Portugal, intervir e retirar a idoneidade a alguém sobre o qual hajam fundadas razões para duvidar da sua capacidade para prosseguir à frente de uma instituição. Em qualquer caso, mesmo nessa hipótese, podem sempre recorrer da decisão do Banco de Portugal. E por isso é muito importante a carta que o dr. Ricardo Salgado escreveu ao Banco de Portugal na época, a abdicar, no fundo, da possibilidade de pedir um novo registo.
Por pressão do Banco de Portugal...
Podíamos fazer pressão e fizemos até ao ponto de as pessoas aceitarem apresentar um plano de sucessão e aceitarem que não fariam parte dos órgãos da administração e mais, aceitar que toda a família se afastaria da gestão do banco. E fizemos tudo no limite do que era permitido e mantendo uma grande pressão. Como imagina, em Outubro, Novembro de 2013 ou Janeiro de 2014, ter comigo a família Espírito Santo, como tive de uma vez, ou o dr. Ricardo Salgado, ou todos os outros e dizer-lhes cara a cara, os senhores não têm idoneidade para continuar à frente de uma instituição, foi uma grande novidade para os próprios e foi também um ato de grande afirmação da independência e da capacidade do Banco de Portugal para interpretar de forma estrita a lei. Só que a lei não permitia ir além de um certo ponto.
Pelo que diz, até à alteração da lei em Outubro de 2014, estava de mãos atadas para retirar a idoneidade a um banqueiro. Fez pressão para que a lei fosse mudada? Quando é que fez pressão?
Fizemos. Teria que fazer o historial, mas uma alteração legislativa não nasce e consuma-se no dia em que é aprovada, nasce com muita antecedência e foi objeto de reflexão interna, primeiro, e das entidades competentes para demonstrar que havia necessidade de criar um quadro legislativo que desse ao supervisor poderes...
Neste período de 2013/2014, foi dando conta do que se passava ao Governo.
Certamente trocámos informações. E se o processo legislativo foi desencadeado, certamente é porque foi convincente a nossa argumentação. E a lei não acolheu totalmente a nossa intenção. Mas dá-nos uma margem de manobra que não tínhamos de forma nenhuma naquela época.
Mudaria alguma coisa do que fez?
Necessariamente, com o conhecimento que se tem depois, seria muito mais... não diria mais agressivo, porque a lei não me permitiria. Mas teria pelo menos uma angústia muito superior, porque estaria limitado pela lei...
Mas não poderia fazer mais?
O que fizemos era o que se podia fazer, numa avaliação justa sobre a informação que tínhamos disponível, com o bom senso que exigia a situação. É muito fácil hoje, com a informação que temos, fazer juízo sobre aquela época. Agora, quantos comentadores me censuraram pelo facto de não ter autorizado um sucessor do dr. Ricardo Salgado a assumir as funções? Quantos?
Ainda sente condições para ser governador do Banco de Portugal?
Claro que sim. Quando se é governador de uma instituição como o Banco de Portugal, que tem por estatuto, por lei orgânica e para o conhecimento público um papel importante e um reconhecimento da sua independência, a independência passa também pela capacidade de levar a cabo a missão que lhe está confiada e pelo cumprimento dos mandatos.
Sente que o Governo está, de algum modo, a pressionar a sua saída?
As relações que tenho tido com o Governo são normais, institucionais e há vários assuntos nos quais temos colaborado intensamente - e que têm sido objeto de declarações por parte do senhor primeiro-ministro, relativamente aos quais espero êxitos tão rapidamente quanto possível, para bem da estabilidade financeira do país.
Mas não ignora que há dentro do PS pessoas com responsabilidades políticas, ou nos partidos que apoiam o Governo, que lhe fazem ataques públicos.
Todos os meus colegas que são governadores dos bancos centrais, começando pelo Fed e passando pelo BCE e pelo Banco de Inglaterra, todos eles têm, em nome da independência e em nome da sua equidistância, que aceitar que a sua ação é escrutinada, é objeto de crítica. Mas também em nome da independência e em nome da defesa da missão da instituição têm de cumprir o seu mandato e prosseguir aquilo que é a missão confiada à instituição.
É um pouco mais do que uma crítica. Há quem diga abertamente que o governador não tem condições para continuar a exercer o seu mandato.
Só não teria condições para exercer o meu mandato se não fosse capaz de garantir a independência do Banco de Portugal e de garantir o cumprimento da missão que lhe está confiada. Como acho que tenho condições para garantir a independência do Banco de Portugal... Mais, há declarações públicas que reconhecem essa mesma independência. Tenho um compromisso muito forte com a missão e os objetivos - e estamos a alcançá-los, nomeadamente o objetivo da estabilidade financeira -, não vejo por que razão é que não devo prosseguir. Pelo contrário. Não há independência de uma instituição sem compromisso forte com o cumprimento dos mandatos.
Esteve há dias com o Presidente da República, foi o Presidente que lhe sugeriu que fosse ao Parlamento para explicar esta polémica mais recente.
Não comento conversas com nenhuma das entidades públicas com quem tenho reuniões, seja o senhor Presidente, seja o senhor primeiro-ministro, seja o senhor ministro das Finanças. Relativamente às decisões que tomo, tomo essas decisões com autonomia própria de quem entende que em determinado momento é oportuno explicar, sobretudo se essas explicações são pertinentes para eliminar mal-entendidos.
Teme que depois de resolvido o Novo Banco, o Governo o despeça?
Em primeiro lugar, o Banco de Portugal é uma entidade independente. Em segundo lugar, tem regras, incluindo as relativas ao mandato do seu governador. E, em terceiro lugar, as relações que tenho com o Governo do ponto de vista institucional não me permitem, de forma nenhuma, imaginar uma situação dessas. De qualquer modo, a questão é saber se quero ou não cumprir o meu mandato e se quero, ou não, ser o guardião da independência do Banco de Portugal.
E quer cumprir o seu mandato até ao fim?
Se eu não cumprir o meu mandato, não cumpro a minha obrigação de salvaguardar a independência do Banco de Portugal.
Fernando Ulrich entregou-lhe em 2013 um documento, alertando-o para a dívida gigantesca do GES. O que fez ao documento?
O documento foi entregue em Agosto de 2013. Nesse momento, o GES já tinha sido identificado como uma das grandes entidades devedoras do sistema. E já estávamos a preparar o ETRIC 2, que é um pedido aos auditores para, numa área que não era da nossa supervisão, emitirem os seus pareceres sobre a solidez financeira das instituições - o que foi feito num primeiro relatório preliminar em Fevereiro de 2014 e que foi entregue no relatório final em Maio de 2014. Aí o Banco de Portugal verificou que o valor do passivo da ESI não correspondia ao valor real - e isso obrigou a uma investigação aprofundada. O BPI entregou um documento que foi devidamente tido em conta, embora não acrescentasse ao que já conhecíamos.
O que disto foi transmitido à troika?
No programa de assistência o que foi seguido pelo BdP e pela troika foi o sistema financeiro. As empresas só foram seguidas na medida que eram devedoras do sistema financeiro. Por isso fizemos o ETRIC 2, que é uma ação completamente excecional, em que pedimos aos auditores para auditar empresas que não estão sujeitas à nossa supervisão, de forma a perceber qual é o risco que delas resulta para os bancos.
Mas já tínhamos cumprido dois terços do programa de assistência.
E dentro desses dois terços fizemos ações extremamente importantes. Primeiro, e contrariamente ao que foi dito na praça pública, fizemos um programa de auditorias externas e independentes de todos os bancos, que foram promovidas pelos auditores sob o controlo do BdP e da troika, que para o efeito constituíram uma comissão de acompanhamento onde estava a troika, o BdP e três peritos de bancos centrais - da Bélgica, França e Espanha.
Em que momento desse processo é que o senhor governador percebe que há um problema muito grande no BES?
Há dois momentos distintos. Um em que tenho a indicação de um endividamento grande do GES, que é Outubro de 2013, depois do ETRIC 1, que leva à constatação de que havia parte da dívida do ESI que não era sediada em Portugal, nem supervisionada pelo BdP, que não estava registada. Significa que o GES entra claramente no nosso radar. E por isso mesmo é que nós determinamos o ring fencing - a blindagem do banco. Todavia, o BES só entra em incumprimento dos rácios de solvabilidade em 27 de Julho, quando apresenta as contas do segundo trimestre de 2014. E só aí é que há um momento de derrocada do BES.
O primeiro momento que percebe que está tudo em risco é Outubro de 2013?
Não é que está tudo em risco, o que está em risco é a área não financeira do BES.
Se me diz que quando Ulrich lhe entrega uma carta e que já não lhe acrescentava muita informação.
O documento que me é entregue pelo dr. Fernando Ulrich foi produzido num contexto diferente, que admito que tenha sido de assessoria num conflito entre partes.
Portugal estava prestes a terminar o programa de assistência. Teve medo que Portugal não conseguisse terminá-lo, se a queda do BES tivesse sido mais cedo?
O problema não se pôs, porque a queda do BES só se manifestou no dia 27 de Julho, em que o banco apresentou as contas trimestrais - e uma insuficiência de capital, abaixo dos mínimos exigíveis. E não conseguiu demonstrar que conseguiria, em tempo útil, repor os níveis de capital exigidos para continuar a operar.
Nunca antes da saída do memorando lhe passou pela cabeça que o BES poderia ser arrastado com o GES?
Tudo foi feito para que o GES não arrastasse o BES, para evitar o contágio. E não foi pela via do contágio que o problema aconteceu. Foi por via de outras operações que, a seu tempo, serão clarificadas.
Parece que só no dia da apresentação de resultados o BdP se apercebeu da situação em que estavam as contas do BES.
Não, uma semana antes o auditor começou-nos a alertar para situações estranhas que afetavam a solidez do banco. Neste momento está em segredo de justiça, mas não foi senão mão humana que fez com que o BES, de um momento para o outro e surpreendendo todos (incluindo quadros do banco), apresentasse uma perda de uma dimensão que jamais poderíamos antecipar.
Portanto, duas, três semanas antes não lhe passava pela cabeça que aquilo pudesse acontecer?
Claro. Aliás, mais, em Julho houve uma comunicação do conselho de administração do BES à CMVM onde referiam qual era o rádio de capital e a almofada que tinham para fazer face a riscos da área não financeira. Nada faria supor uma situação destas, como resulta de todos os testemunhos [da altura]. Há motivos suficientes para pensar que o banco teve um processo de descapitalização que só se revelou no final do segundo trimestre.
Hoje em dia, podemos ter a garantia de que um caso BES não se volta a repetir?
Podemos ter a garantia hoje de que há mecanismos de seguimento muito mais potentes do que havia nessa época. Temos a garantia de que hoje há uma grande atenção aos efeitos de euforia, nas fases de expansão, de forma a limitar bolhas creditícias e bolhas imobiliárias. Podemos ter a garantia de que há instrumentos de intervenção, se a questão for detetada a tempo. Ninguém pode pensar que antecipa o ato antes de ele ser produzido - ou seja, só se sabe que um crédito foi mal concedido depois de ele ter sido concedido. E é para isso que os bancos têm capital para absorver as perdas, é por isso que se pede aos bancos que tenham - porque o objetivo último do supervisor é garantir duas coisas: a estabilidade financeira e a segurança dos depósitos. Avaliada a nossa ação por estes dois critérios, podemos dizer que, apesar do grande problema que tivemos, nunca houve fuga de capitais, não há depositantes que tenham perdido os seus depósitos, nem houve interrupção de financiamento da economia. E, se quisermos perceber o que significa isto, é olhar para o que aconteceu em Chipre, na Irlanda, na Grécia, na Bélgica. Em todos eles ou depositantes sofreram, ou os contribuintes sofreram muito mais do que em Portugal.
O Montepio é um caso com semelhanças com o BES, no que respeita às notícias que vão saindo nos jornais sobre quem lidera, não o banco, mas o acionista. Como está o Montepio?
A Caixa Económica está estabilizada, está num processo de reformulação do modelo de governo, tem uma administração profissionalizada, está a dar passos sérios no sentido de se transformar num pilar financeiro do terceiro sector.
E o acionista?
É uma entidade que não é supervisionada pelo BdP.
E não o preocupa que o único acionista de um banco não seja supervisionado, na prática, por ninguém?
Ele é supervisionado por uma entidade pública [Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social]. E eu creio que a entidade que o supervisiona está consciente da necessidade de ser diligente e estar atenta à instituição - certamente que estará.
Não o preocupa que haja produtos da associação mutualista, seguros, que são vendidos aos balcões da Caixa Económica Montepio Geral?
Os produtos não são supervisionados por nós. Em qualquer caso, no sentido de separar as entidades, nós requeremos a separação de marcas.
E não o preocupa que haja uma exposição excessiva do acionista à Caixa Económica? Se o acionista tiver um problema, como é que fica a Caixa Económica?
A questão não é essa. O que me preocupa não é que o acionista tenha problemas, é assegurar que o banco não está exposto ao acionista. Essa é que é a raiz do contágio. Se um acionista tiver dificuldades, vende ações e a sua participação sem afetar o banco. Só afeta se ele também beneficiar de crédito. O crédito entre entidades relacionadas não pode ser aceite.
Sente-se confortável com o modelo em que o acionista não pode ser supervisionado pelo BdP? Deve repensar-se, do ponto de vista legislativo?
Julgo que as autoridades estão atentas à necessidade de reforçar a qualidade da relação entre o acionista e a Caixa Económica. Nós próprios estamos interessados nisso.
É uma conversa que existe há bastante tempo: está toda a gente muito atenta, mas...
É ótimo que toda a gente esteja muito atenta, porque estamos num estado preliminar - que é a passagem à fase seguinte, que é tomar medidas no sentido de assegurar uma maior estabilidade. E acho que os passos vão nesse sentido: clarificação do modelo de governo, separação das entidades e separação do papel de acionista do de gestão da instituição financeira.
Quanto a regras de supervisão, o Governo tem falado com o BdP sobre as mudanças que quer fazer? E, já agora, aceita que o poder de resolução saia do BdP?
A resolução tem duas dimensões: a de acompanhamento dos bancos, que é saber se os bancos têm planos de ataque a situações-limite que podem ficar no BdP ou não. E a situação de resolução propriamente dita, que implica a presença à mesa da entidade política, porque as opções tomadas não são politicamente indiferentes. Fazer uma recapitalização obrigatória, fazer uma resolução com venda de ativos, fazer uma resolução com um banco de transição ou liquidar um banco têm implicações do ponto de vista social e de política de sistema. Mais: algumas dessas opções só podem ser tomadas por quem tem acesso a dinheiros públicos - seja com um empréstimo de transição, seja com um financiamento direto. E o BdP não pode fazer nenhum tipo de financiamento dessa natureza, nem tomar parte no capital. Não tem sentido que um ato de grande importância e urgência não se faça com a presença e sob o comando da entidade que tem o poder, a legitimidade e os recursos para o decidir. No meu entender, este poder deve estar naturalmente fora do BdP.
Outra questão é a arquitetura do sistema: há três entidades de supervisão, há um conselho de supervisores financeiros e, acima disso, existe o conselho de estabilidade financeira, que é presidido pelo ministro das Finanças, o que é uma resposta à minha preocupação de ter um agente político no momento crítico de uma decisão. Temos de olhar para esta arquitetura e perguntar se ela funcionou sempre de forma eficiente.
A sua resposta é?
Há motivos para aperfeiçoamento, tenho ideias muito claras sobre o reforço de articulação entre supervisores - e uma é a de criar um secretariado permanente para partilhar informação.
Estes resultados, orçamentais e da economia, de 2016 mostram que havia afinal uma alternativa à política dos tempos da troika?
Não, esses factos demonstram que vai ser possível sair do procedimento por défice excessivo (PDE), o que é muito importante, mostram que o sector turístico e dos bens transacionáveis continua a ser fundamental para o desenvolvimento da economia portuguesa.
Traduzindo a sua resposta: não mudou nada? No que respeita a modelo económico alternativo?
Não, nada disso. O que digo é que estamos dependentes do sector de bens transacionáveis, como o turismo. Uma economia é como um avião com quatro motores. Dois estão ligados. Um é o sector de bens transacionáveis e exportações, outro é o consumo privado, outro o consumo público e outro o investimento. O que digo é que o motor dos transacionáveis teve a capacidade para aguentar o voo durante o período mais difícil e está a revelar a mesma capacidade para continuar a aguentar o voo, mesmo com os outros motores [da economia] a começar a trabalhar. O fundamental é que o motor dos transacionáveis não diminua só por os outros entrarem em funcionamento.
É previsível que o BdP reveja as suas previsões?
Ainda é cedo para dizer.
A dra. Teodora Cardoso dizia na semana passada que não havia sustentabilidade na forma como foi obtido o resultado do défice...
O BdP tem um tratado de Tordesilhas com o Conselho de Finanças Públicas (CFP) - e foi promotor do mesmo em 2010. Tenho muito apreço pelo CFP, pela sua independência e jamais farei uma declaração que é da competência...
O BdP nos seus relatórios também faz análises às finanças públicas.
Mas o que dizemos é que é muito importante sairmos do PDE, é muito importante garantir uma trajetória de sustentabilidade da dívida pública. E, para isso, é muito importante que as políticas sejam consistentes com a sustentabilidade.
E estão a ser?
... a composição das políticas não são com o BdP. Olhando para as declarações públicas que foram feitas pelos agentes políticos, que se congratularam com os resultados da execução orçamental, julgo que temos hoje um contexto favorável para defender a sustentabilidade das contas públicas.
E com base nos números?
A execução é consistente com a saída do PDE. E o próximo Orçamento tem de assegurar a continuidade dessa consistência.
O Banco de Inglaterra reconheceu ter feito más avaliações dos impactos da crise (e das medidas aplicadas naqueles anos), o Banco de Espanha também. O Banco de Portugal faz ou fará alguma avaliação do seu papel e das estimativas que fez durante este período?
O Banco de Portugal tem a humildade e capacidade de autoanálise para poder reconhecer quando é que as premissas do seu raciocínio estavam sub ou sobreavaliadas e rever as suas projeções. Sempre que publicamos projeções, estamos na prática a reconhecer que ou erramos por excesso ou por defeito. O segundo aspeto é reconhecer que a cultura cívica em Portugal não é exatamente a cultura cívica do Reino Unido. E, portanto, ter instituições capazes de fazer uma autoavaliação é desejável, o BdP será sempre a favor disso, mas é preciso que as pessoas também saibam enquadrar esse exercício num exercício cívico que não seja meramente... de delapidação pública.
O BdP não irá, portanto, fazer esse tipo de análise, como faz o Banco de Inglaterra ou o Banco de Espanha?
Reparem: quando estou a falar convosco, estou a responder a um juízo sem avaliação - porque a avaliação já está a ser feita em público, sem ter sido dada a oportunidade de nós apresentarmos o nosso argumento e avaliação.
Mas imaginamos que os seus congéneres de Inglaterra e Espanha também dão entrevistas...
As circunstâncias do Banco de Espanha são completamente diferentes das nossas.
Tem havido muitas notícias sobre as nomeações para a administração do Banco de Portugal, com nomes que terão sido rejeitados pelo Governo. É verdade que voltou atrás com a sua lista de nomes propostos?
Eu não comento diálogos que têm de se travar à porta fechada. E em que o princípio é: o governador apresenta uma proposta e o Governo aprova os nomes. É natural que haja um diálogo intenso. Como em qualquer diálogo há... pontos de vista.
E quando é que este diálogo vai chegar ao fim?
Quando as duas partes convergirem.
É natural, tendo em conta o estatuto de independência do Banco de Portugal, que o Governo rejeite sistematicamente um nome que é proposto pelo governador?
Não faço comentários sobre isso.
Achou bem a nomeação de Francisco Louçã para o conselho consultivo do Banco de Portugal?
O conselho consultivo é, por natureza, um reflexo da sociedade civil e dos meios económicos. Tem um papel que é o de transmitir presencialmente aquilo que por vezes lemos ou ouvimos. E temos a grande oportunidade de partilhar, à porta fechada, aquilo que não podemos partilhar na praça pública.
Pareceu-lhe natural?
Não tenho nenhuma dificuldade em viver com a diversidade.
Acharia bem que o governador do Banco de Portugal fosse, para bem da sua independência, nomeado pelo Presidente da República?
Em devido tempo, em 2012, apresentei uma proposta ao ministro das Finanças que depois não teve seguimento (que teve que ver com o facto de ter implicações constitucionais). Se recuperarem essa proposta, perceberão qual era o pensamento do governador.
Não nos quer explicar que proposta era essa? Pelo que me diz, havendo limitação constitucional, era para a nomeação ser feita pelo Presidente da República.
Defendo, está escrito - no Ministério das Finanças e nos arquivos do Banco de Portugal -, um mandato único de oito anos, em vez de dois mandatos. Exatamente em nome da independência. E defendo que o governador devia ser nomeado pelo Presidente, por indigitação do governo. E que o presidente do conselho de auditoria devia ser nomeado pela Assembleia da República, por indigitação do governo - o que significa que não excluo, em nada, o governo do processo. Gostaria era que, para reforçar a independência, houvesse uma dupla legitimidade. Para o governador e para o conselho de auditoria.
O PS já se pronunciou no sentido de uma nomeação pelo Presidente, o PSD e CDS também. Porque é que acha que nunca avançou?
Não faço ideia. Em 2012 eu fiz uma proposta. Neste momento, se a quisermos retomar, terá de ser revista em função de factos posteriores, nomeadamente pela união bancária que, na altura, não estava nem de perto, nem de longe, no nosso horizonte. Hoje exercemos um poder partilhado.