Para compreender o porquê da necessidade de medidas de austeridade, é imperativo ter noções básicas sobre a sustentabilidade de uma dívida púbica. De uma forma sucinta, essa sustentabilidade é influenciada por dois fatores: desempenho das contas públicas (diferença entre as receitas e custos do estado – excluindo os juros pagos pela dívida – em percentagem do PIB) e a diferença entre a taxa de juro real paga pela dívida e a taxa de crescimento do PIB real. No entanto, no longo-prazo é mais determinante o segundo ponto uma vez que se o crescimento da economia for sempre superior aos juros pagos pela dívida, esta contribui não só para a diminuição do valor da dívida relativamente ao PIB, como também leva ao maior valor nominal do PIB, levando a uma consequentemente a uma diminuição de um possível deficit das contas públicas (uma vez que este está também em percentagem do PIB). Isto levou Olivier Blanchard (2019) a referir que perante uma situação destas pode-se e deve-se “empurrar a dívida” para a frente, pagando a dívida existente emitindo nova dívida, mas diminui-la como consequência do crescimento económico – assim seria possível reduzir o tamanho da dívida relativamente ao PIB sem nunca se precisar de aumentar impostos. O ex economista-chefe do FMI, refere ainda que uma taxa de crescimento real do PIB superior à taxa de juro real paga pela dívida “é historicamente uma regra e não uma exceção” (salvo raras situações).
Com a última crise financeira de 2008, Portugal começou a contrair elevados deficits fiscais – consequência não só de uma já deficitária balança fiscal, mas principalmente pelo abrandamento da economia. Isto levou a que investidores se afastassem da dívida portuguesa, levando a que a taxa de juro paga por ela fosse muito superior à taxa de crescimento da economia, o que fez com que a dívida entrasse rapidamente numa trajetória claramente insustentável. No fundo, as duas parcelas da fórmula (balança fiscal e diferença entre as taxas de juro da dívida e de crescimento do PIB) estavam a contribuir para o seu aumento. A solução encontrada foi a de pedir ajuda externa, que acabou por levar a um aumento de impostos e a uma diminuição dos gastos do estado. Essa era a única situação possível perante as circunstâncias europeias, mas não necessariamente a melhor.
Nos EUA, perante a mesma crise financeira, a Fed começou por comprar elevadas quantidades de dívida pública americana que contribuiu substancialmente para atenuar a diminuição do crescimento real do PIB e para reduzir a taxa de juro real paga pela dívida levando assim a uma trajetória mais sustentável da dívida pública. Se o Banco Central Europeu (BCE) tivesse feito o mesmo na zona Euro, toda a consolidação orçamental teria sido menos exigente e consequentemente menos dolorosa para todos os cidadãos europeus. Se da mesma forma que o BCE “salvou” o euro anos depois com as mesmas medidas utilizadas pela Fed, também poderia ter certamente evitado essa mesma extrema situação de “salvamento” em que a zona euro se encontrava.
Na atual crise, a situação é felizmente muito diferente. O Banco Central Europeu (BCE) aumentou ainda mais as suas medidas expansivas aumentando o seu programa de compra de ativos no valor de 750 mil milhões de euros para tentar conter as graves consequências económicas da Covid-19. Para além disso, ao tomar a decisão de deixar de aplicar os 33% de autolimite à compra de obrigações de dívida pública acabou por marcar também uma clara posição de que estaria aqui para o que fosse preciso (“whatever it takes”). Esta ação do BCE é determinante para que Portugal continue a pagar menos de 1% pela sua dívida a 10 anos (na altura em que se pediu ajuda externa em 2011, o país estava a pagar cerca de 15%) e evite então uma situação em que tenha de ter medidas de austeridade ou de pedir ajuda a instituições internacionais.
No entanto, é expectável que a dívida portuguesa entre numa trajetória insustentável uma vez que se espera uma contração da economia abaixo do pouco que se está a pagar pelos juros da dívida. É expectável que essa insustentabilidade dure apenas um ano, sendo esperado que em 2021 a economia volte a crescer bem acima dos juros da dívida.
Não há então razão para se ter medidas de austeridade num futuro próximo nem talvez a médio prazo. É certamente esperada alguma contenção fiscal à medida que a economia vai recuperando, no entanto não deverá ser nada comparado com os anos em que perdemos a soberania de decidir o que era melhor para nós. Medidas de expansão fiscal é aquilo que se deve procurar ter em recessões, enquanto as de contração ou contenção fiscal, aquelas que se esperam em momentos de maior crescimento económico. Isso é aparentemente o esperado, e é saudável que assim seja.