Intervenção[1]
Bom dia,
É com todo o gosto que participo na 4.ª edição da Money Conference.
Nesta minha nota de abertura proponho-me comentar alguns dos desafios com o que sistema bancário nacional se depara e salientar algumas das respostas possíveis.
Começo com um apanhado de alguns indicadores relevantes.
Nos últimos anos, o sistema bancário português tem-se caracterizado por um conjunto de desenvolvimentos positivos. Os bancos nacionais estão hoje mais capitalizados e com uma maior estabilidade da intermediação de recursos. Dispõe de abundante liquidez e melhoraram os seus índices de produtividade. Em termos quantitativos observou-se[2]:
No primeiro semestre de 2019, assistiu-se a um aumento da rendibilidade do sistema bancário português. A rendibilidade do capital próprio (no acrónimo inglês, ROE), em Junho de 2019, situou-se em 8,4%, o que compara com 6% da média das instituições significativas supervisionadas pelo Mecanismo Único de Supervisão[4].
Para este aumento concorreram, por um lado, fatores de natureza estrutural, nomeadamente o aumento de eficiência do setor e, por outro, o menor peso das perdas associadas aos ativos gerados no período de grande expansão creditícia, observável na redução do custo com provisões e imparidades.
Contudo, subsistem enormes desafios para o sector num contexto de crescimento económico moderado nos próximos anos, de baixas taxas de juro e de elevado endividamento dos agentes públicos e privados.
Assim, em primeiro lugar, os bancos têm de continuar a reduzir os ativos não produtivos, em linha com as orientações e planos de redução submetidos às autoridades de supervisão. Há que ter em conta que o rácio de empréstimos não produtivos (NPL) líquido de imparidades do setor bancário português continua a ser um dos mais elevados no quadro europeu, não obstante o progresso alcançado desde 2016.
Em segundo lugar, subsiste a necessidade de o sistema bancário continuar a reforçar a sua capacidade de absorção de perdas. Não obstante a melhoria observada nos últimos anos, com o aumento dos rácios de capital, estes permanecem abaixo da média dos países da área do euro.
Além disso, permanecem desafios ao cumprimento dos requisitos mínimos de fundos próprios e dos créditos elegíveis suscetíveis de absorver perdas e contribuir para a recapitalização da instituição em caso de resolução (MREL) num contexto de rendibilidade que se perspetiva desafiante.
Em terceiro lugar, torna-se necessário assegurar (i) que as taxas das operações ativas, nomeadamente do crédito, refletem a natureza e o risco das aplicações e (ii) o acompanhamento ativo da qualidade creditícia dos mutuários ao longo do horizonte temporal das operações.
Num contexto de baixas taxas de juro é, ainda, necessário evitar comportamentos desajustados de search for yield cujo impacto na solvabilidade das instituições se reflete vários anos depois.
Em quarto lugar, será necessário ter em conta que num contexto de uma redução generalizada de yields dos soberanos – que se situam em níveis excecionalmente baixos – se acentua a possibilidade de uma reavaliação dos prémios de risco e uma maior discriminação dos soberanos.
Tal significa que é desejável uma diversificação das carteiras em termos de emitentes e uma redução da correlação dos perfis de riscos dos mesmos. Imperativo que é tanto maior quanto o ajustamento das carteiras possa ser facilmente absorvido pelo mercado sem afetar os emitentes. Por outro lado a diversificação de carteiras permite antecipar eventuais desenvolvimentos regulatórios.
Esta é uma matéria de inegável interesse não apenas para o soberano, mas também para o sistema financeiro português atento o quadro incompleto da União Bancária em que o doom loop ainda prevalece.
Em quinto lugar, os bancos têm de estar preparados para uma situação em que o mercado de capitais passa a contar mais para o financiamento da economia real. Tal significa (i) que para idêntica captação de recursos, os bancos terão uma diferente composição do ativo e (ii) que a captação de recursos ficará sujeita à concorrência de instituições financeiras não bancárias e de emitentes não financeiros de instrumentos de dívida e de investimento em capital.
Neste contexto é de recordar que ao nível europeu o setor financeiro não bancário tem vindo a expandir significativamente o seu papel no financiamento da economia real, correspondendo já a 55% do total do sector financeiro da área euro. O total do ativo dos não-bancos quase duplicou nos últimos 10 anos na área euro. Por comparação, a dimensão do sector bancário estagnou durante este período.[5]
O mais recente impulso para o aprofundamento da União de Mercados de Capitais[6] vai ao encontro de uma maior integração dos mercados financeiros europeus, que consigo traz novos desafios e oportunidades, num contexto em que a promoção do financiamento sustentável ganha preponderância.
A captação de poupança e o financiamento através do mercado de capitais, em alternativa ao sector bancário tradicional, proporcionará um aumento da partilha de risco privado numa base transfronteiriça, criando ao mesmo tempo pressões concorrenciais que revelarão o excesso de capacidade instalada, gerando movimentos de consolidação como resposta à necessidade de maior escala e eficiência.
Em sexto lugar, os bancos, tal como as demais instituições financeiras incumbentes, enfrentarão a concorrência de novas entidades baseadas em plataformas e modelos de transacionalidade de base digital que lhes colocam um problema do ponto de vista tecnológico e de quota de mercado. Este desafio vem tornar mais premente a necessidade de investimento e absorção de novas tecnologias tanto do ponto de vista dos processos como do relacionamento com o mercado (a designada banca digital).
Neste contexto, é necessário que o sistema bancário adote uma postura pró-ativa, avaliando atempadamente a sua competitividade e viabilidade do(s) seu(s) modelo(s) de negócio atentos os diferentes segmentos e produtos.
Em sétimo lugar, é necessária uma abordagem que interioriza e antecipa, sempre que possível, a dinâmica regulatória e que faz do respeito das regras da supervisão – o cumprimento de rácios de capital e de liquidez, stress test, etc. – uma vantagem competitiva geradora de confiança do mercado.
Em oitavo lugar, é essencial assegurar a confiança junto do mercado de capitais e do público em geral. Tal confiança está dependente da eliminação de elementos de incerteza quanto à natureza e valorização dos seus ativos bem como dos modelos e estratégias de negócio, passando de uma abordagem de transparência limitada para uma abordagem de transparência ajustada às necessidades de informação, em termos de conteúdo e forma, de cada parte interessada.
Permitam-me que desenvolva este último aspeto.
Em relação ao governo das instituições, para evitar a materialização de eventos que ponham em causa a sua solidez financeira, é necessário assegurar que as quatro linhas de defesa se encontram plenamente operacionais e focadas na sustentabilidade da instituição e na salvaguarda da confiança pública na sua atividade.
Assim, ao Conselho de Administração cabe assegurar uma gestão sã e prudente, bem como antecipar e adaptar o modelo de negócio em função dos desenvolvimentos da sua envolvente. Cabe-lhe, nomeadamente, interpretar o apetite de risco dos acionistas, tanto do ponto de vista das necessidades de capital como de tomada de risco e atuar com diligência, neutralidade e respeito consciencioso dos interesses dos depositantes, investidores, demais credores e clientes em geral, tendo presente o princípio da repartição de riscos e da segurança dos fundos que lhe foram confiados.
Aos órgãos de fiscalização e às funções de controlo compete observar com rigor e em substância os mandatos que são concedidos pela lei.
Merece especial destaque o papel do órgão de fiscalização pela relevância e abrangência das competências que a lei lhe atribui, e que incluem fiscalizar a administração da sociedade; verificar a exatidão dos documentos de prestação de contas e a correta avaliação do património e dos resultados; e fiscalizar a eficácia dos sistemas de gestão de riscos, de controlo interno e de auditoria interna, entre outras responsabilidades.
As funções de controlo interno (compliance, controlo da gestão de riscos e a auditoria interna), são também essenciais, nomeadamente para garantir um adequado controlo dos riscos incorridos na atividade bancária.
Ao auditor externo cabe certificar de forma exaustiva a veracidade e a completude da informação, nomeadamente os riscos que a instituição incorre e os custos para as diferentes partes interessadas.
Pelos deveres de independência, integridade e objetividade que a lei lhe atribui, bem como pela natureza de interesse público que tal função assume, o auditor externo constitui o elemento que exerce maior influência na credibilização externa das demonstrações financeiras, para o que contribui, naturalmente, a certificação legal de contas.
Cabe, por último, ao supervisor, conforme referi no meu discurso de tomada de posse em 2010,“aplicar um princípio de dúvida sistemática (…) para ser capaz de assumir um papel contra-cíclico.” Tal implica uma “indagação sobre (…) a solidez dos (…) fundamentos, os riscos futuros e a sua representação no balanço da instituição supervisionada”[7] .
Tal exige a adoção de uma perspetiva cética, intrusiva e pró-ativa, não só na verificação da veracidade da informação e cumprimento dos quadros regulatórios, como na monitorização da sustentabilidade da instituição face ao risco tomado e à capacidade de absorção desse risco. Ao supervisor cabe ainda exigir o reforço de capitais para fazer face ao modelo de negócio/riscos incorridos e aos riscos da economia (stress test).
Tendo presente a necessidade de reforçar permanentemente os mecanismos destinados a prevenir ou mitigar os riscos para a estabilidade do sistema financeiro, o Banco de Portugal vai lançar em breve em consulta pública um projeto de Aviso que revogará e substituirá o Aviso n.º 5/2008 relativo ao controlo interno, à luz dos desenvolvimentos ao nível da legislação europeia e portuguesa sobre estas matérias, das orientações da Autoridade Bancária Europeia, das melhores práticas internacionais, da reflexão e experiência prática de supervisão acumuladas pelo Banco de Portugal, bem como por questões de certeza e segurança jurídica.
Esta consulta decorrerá num contexto em que, no conjunto das instituições significativas supervisionadas pelo Mecanismo Único de Supervisão, continua a persistir um número significativo de oportunidades de melhoria ao nível do governo interno, especialmente ao nível da gestão de risco, agregação de dados, capacidade de reporte e auditoria interna.[8]
Sendo seguramente um objetivo de interesse comum, espero que participem ativamente nesta consulta, contribuindo com a vossa experiência para o desenho final de um instrumento fundamental para defesa da estabilidade financeira.
Muito obrigado a todos.
[1]Preparado para apresentação.
[2]Banco de Portugal (2019), Séries Longas – Setor Bancário Português 1990-2018, disponível em www.bportugal.pt/sites/default/files/anexos/documentos-relacionados/series_longas_setor_bancario_portugues.xlsx e Banco de Portugal (2019), Sistema Bancário Português: desenvolvimentos recentes – 2.º trimestre de 2019, disponível em: www.bportugal.pt/sites/default/files/anexos/visaosistemabancarioportuguesdados_pt.xlsx.
[3]Primeira data a partir da qual existem dados.
[4]Banco de Portugal (2019), Sistema Bancário Português: desenvolvimentos recentes – 2.º trimestre de 2019, disponível em: www.bportugal.pt/sites/default/files/anexos/visaosistemabancarioportuguesdados_pt.xlsx e ECB (2019), Supervisory Banking Statistics Q2 2019, disponível em: www.bankingsupervision.europa.eu/banking/statistics/html/index.en.html.
[5]Guindos, L. (2019), “Key vulnerabilities for euro area financial stability”, Remarks at the meeting of the Financial Stability Contact Group, Frankfurt am Main, 2 October.
[6]Cf. discussões no âmbito do ECOFIN informal de Setembro de 2019 (https://eu2019.fi/documents/11707387/15400298/CMU+Reboot+Informal+ECOFIN+final+Issues+Note+2019-09-09_S4.pdf/05142af6-25f0-74d0-7d2a-7eb68a2bcb39/CMU+Reboot+Informal+ECOFIN+final+Issues+Note+2019-09-09_S4.pdf) e Next CMU High-level Group (iniciativa conjunta dos Ministros das Finanças da Alemanha, França e Holanda: https://minefi.hosting.augure.com/Augure_Minefi/r/ContenuEnLigne/Download?id=7AEFAF36-7449-471F-B86F-08E8B9E1CE71&filename=1470%20-%20Savings%20and%20Sustainable%20Investment%20Union%20joint%20press%20release%20(004).pdf e https://www.economie.gouv.fr/files/2019-10/The_Next_CMU_HL_DO.pdf).
[7]Costa, C. (2010), Discurso de tomada de posse do Governador do Banco de Portugal, 7 Junho, disponível em: www.bportugal.pt/intervencoes/discurso-de-tomada-de-posse-do-governador-do-banco-de-portugal-0.
[8]Cf. www.bankingsupervision.europa.eu/ecb/pub/pdf/ssm.srep_methodology_booklet_2018~b0e30ced94.en.pdf, p. 9.