1. É com todo o gosto que participo nestas Jornadas de Reestruturação, Liquidação e Insolvência dedicadas à venda de carteiras de ativos não produtivos, em particular de empréstimos non performing (na sigla inglesa NPL).
Procurarei enunciar alguns dos elementos que caracterizam o atual debate sobre a redução dos NPL, partindo de um breve enquadramento histórico, dando nota dos desenvolvimentos nacionais mais recentes e alertando para alguns desafios com que nos confrontamos.
Começo, recordando que a resposta das autoridades internacionais (nomeadamente europeias) à crise de 2007/2008 foi evoluindo, à medida que diferentes tipologias de riscos se foram materializando.
As dificuldades sentidas a partir de 2007 desencadearam múltiplas intervenções do setor público no sistema bancário em diferentes Estados Membros da União Europeia, com recurso a fundos públicos (os denominados bailout) para conter, entre outros, o risco de ‘too big to fail’ e salvaguardar a estabilidade financeira.
O risco moral, as implicações para os contribuintes e o doom loop bancos-soberano associado condicionaram o debate sobre o combate à crise e a configuração da resposta que se seguiu.
A partir de 2008, a Comissão Europeia iniciou o desenvolvimento de um enquadramento normativo de auxílios de Estado específico para instituições financeiras.
Este enquadramento foi sucessivamente revisto através de um conjunto de Comunicações que se foram tornando mais restritivas ao longo do tempo, ao impor requisitos sucessivamente mais exigentes, através do reforço da capacidade de absorção privada de perdas, sob o argumento da proteção dos contribuintes.
Na União Europeia, este processo regulatório culminou na adoção da Diretiva relativa à Recuperação e a Resolução de Instituições de Crédito (na sigla inglesa BRRD [2]), onde o bail-in se afirmou definitivamente em contraponto do bailout.
2. Os ativos não produtivos assumiram especial relevância em algumas economias durante a crise e no período de ajustamento subsequente, tendo, mais recentemente, adquirido também visibilidade no contexto das discussões sobre redução de risco no setor bancário requerida para o aprofundamento da União Económica e Monetária.
Vale a pena recordar que as causas que determinaram o aumento sistémico dos ativos não produtivos em alguns países europeus foram distintas, ocorreram em momentos do tempo distintos e foram enquadradas por contextos regulatórios evolutivos.
Houve situações caracterizadas pelo fim abrupto de ‘bolhas’ no sector imobiliário, que se materializaram no início da crise financeira, para as quais se arquitetaram soluções num contexto regulatório mais favorável.
Ao passo que em outras jurisdições, os NPL resultaram do aprofundamento e difusão progressiva da(s) crise(s), com impactos desfasados quer temporal quer geograficamente, ao mesmo tempo que a restritividade regulatória aumentava para mitigar os fatores que referi anteriormente, como seja a ligação entre bancos e soberano.
Atentas as exigências ao nível das regras dos auxílios de Estado (a partir de 2013) e da BRRD (a partir de 2015), a concretização de uma transferência de ativos ‘em bloco’ da quase totalidade de NPL da generalidade das instituições de crédito para fora dos seus balanços tornou-se muito mais difícil por comparação com soluções como o NAMA, na Irlanda, e o SAREB, em Espanha, criados nas primeiras fases da crise.
Conforme recentemente clarificado pela Comissão Europeia, na Blueprint sobre Asset Management Companies nacionais, o envolvimento do Estado em soluções tipo bad bank fora de um contexto de resolução ou liquidação, exige, entre outros requisitos:
- o respeito pelas regras relativas aos auxílios de Estado, incluindo que a instituição de crédito apresente um plano de restruturação e que exista uma adequada repartição de encargos (burden sharing), e
- que o montante de apoio público prestado seja limitado, não devendo ser utilizado “para compensar perdas que a instituição tenha sofrido ou seja suscetível de sofrer num futuro próximo”, sendo para tal necessário efetuar previamente um stress test e/ou um asset quality review[3].
Neste contexto, o potencial para uma transferência ‘em bloco’ de ativos não produtivos para uma entidade tipo bad bank tem que ter em conta as seguintes restrições, que se encontram estreitamente inter-relacionadas:
- o enquadramento regulamentar da União Europeia, que acabei de referir,
- o impacto no capital dos bancos, e
- o impacto nas contas públicas.
Importa, assim, avaliar se os riscos para a consolidação orçamental e para estabilidade financeira procedentes da sujeição do sistema bancário aos requisitos que acabei de enunciar justificam os seus benefícios.
Ausente uma solução que permita uma redução acentuada do nível de NPL sem contrapartidas geradoras de instabilidade financeira, as instituições de crédito devem encontrar e aplicar as opções mais adequadas a cada situação.
A título de exemplo refira-se que no caso de créditos concedidos a empresas que apresentem sinais claros de viabilidade, poderá ser mais apropriado optar por estratégias envolvendo a reestruturação da empresa, com base em medidas como a conversão de créditos em equity, aumentos de capital, etc.
A venda de carteiras de NPL poderá, contudo, ser preferível noutras situações onde os investidores especializados poderão ter uma atuação diferenciadora da dos bancos.
Todavia, a capacidade de venda das carteiras de NPL depende não apenas da sua adequada valorização, mas também do diferencial denominado ‘bid-ask spread’.
De uma forma generalizada, as instituições de crédito, também pressionadas pelos supervisores, têm vindo a aumentar os níveis de cobertura dos NPL por imparidade, o que tem tido um impacto muito positivo no aumento de liquidez no denominado mercado secundário de NPL.
Contudo, é de salientar que o bid-ask spread é tipicamente elevado no caso dos NPL fundamentalmente por três razões:
- rendimento elevado exigido pelos adquirentes,
- tempo de recuperação das garantias pela via judicial, tipicamente mais elevado em países com sistemas judiciais historicamente mais morosos, e
- assimetria de informação, já que o adquirente dispõe de menos informação sobre os mutuários, pelo que avalia a capacidade de recuperação de forma mais conservadora.
Assumem, neste contexto, extrema relevância as medidas que permitam tornar o enquadramento legal, judicial e fiscal mais eficaz e eficiente.
Atenta a discussão destas Jornadas, é de salientar as várias iniciativas integradas no “Plano de ação para combater os créditos não produtivos na Europa”, adotado em julho de 2017 pelo Conselho de Ministros de Economia e Finanças da União Europeia – ECOFIN –, que visam precisamente aumentar a liquidez no mercado secundário de NPL.[4]
Entre essas iniciativas, algumas das quais ainda carecem de uma análise mais cuidada com vista a aferir o verdadeiro impacto que poderão ter, destacam-se:
- a proposta de Diretiva da Comissão Europeia[5], em negociação ao nível do Conselho e do Parlamento Europeu, que tem como principais objetivos:
a. encorajar o desenvolvimento do mercado secundário de NPL, ao melhorar o acesso dos compradores de créditos e dos servicers a empréstimos originados por instituições de crédito,
b. bem como tornar mais eficientes os procedimentos extrajudiciais de recuperação das garantias reais.
A Comissão Europeia propõe a introdução de regras e standards harmonizados para entidades que adquiram ou assegurem a gestão (servicing) de empréstimos, bem como medidas mais céleres de execução das garantias reais sem a intervenção de tribunais ou outras instâncias legais;
- as Guidelines da EBA sobre disponibilização de informação ao mercado sobre non perfoming exposures (NPE) e crédito reestruturado.[6] Estas Guidelines têm como objetivo promover a transparência, fornecer informações significativas aos participantes do mercado e dar resposta a quaisquer potenciais assimetrias de informação;
- o conjunto de templates publicados pela EBA para que possam ser utilizados pelas instituições de crédito na organização da informação a fornecer aos potenciais investidores em NPL.[7] Estes templates visam a disponibilização de um conjunto de dados que poderão ser utilizados em processos de análise, due diligence e avaliação inerentes à transação de NPL; e
- a criação de plataformas de transação de NPL a fim de estimular o desenvolvimento do mercado secundário. A este respeito a Comissão Europeia publicou recentemente, um Staff Working Document pormenorizando os aspetos práticos desejáveis para a implementação deste tipo de iniciativa.[8]
3. Foquemo-nos agora no caso português.
Fruto de um enquadramento regulatório e de supervisão muito mais exigente, o setor bancário nacional realizou nos últimos anos um processo significativo de ajustamento e de consolidação, que permitiu melhorar a sua solvabilidade, reduzir os ativos não produtivos, em particular os NPL, e aumentar a sua eficiência operacional, com efeitos visíveis na sua rendibilidade.
Foram também desenvolvidas ações de supervisão e avaliação particularmente exigentes com vista ao reforço dos mecanismos de controlo e de governo interno e à qualificação e estabilização das equipas de gestão de várias instituições.
Este processo, conjugado com o percurso de consolidação orçamental do país e a recuperação da atividade económica, contribuiu para a melhoria da perceção dos investidores internacionais relativamente ao setor bancário e ao soberano português, o que se tem consubstanciado numa redução nos prémios de risco e na melhoria de ratings.
Em concreto em relação aos NPL, desde 2016 que se observam progressos significativos quer na redução do stock quer no aumento da cobertura destes ativos por imparidades:
- Desde o máximo histórico, observado em junho de 2016, o rácio de NPL diminuiu de 17,9% para 11,3% em setembro de 2018 (-6,6 pp), refletindo uma redução de 19,2 mM€, ou 38% do stock de NPL, que ascendia, naquela data, a 50,4 mM€;
- Esta redução, que tem vindo a ser progressiva, está associada a uma redução significativa de NPL associados a empresas não financeiras em quase 13 mM;
- A variação do stock total de NPL ficou a dever-se, principalmente, aos abatimentos ao ativo e, em segundo lugar e em pé de igualdade, às vendas e às curas (líquidas) de NPL, cuja importância tem vindo a aumentar;
- Em setembro de 2018, o rácio de cobertura de NPL por imparidades ascendia a 53,2%, 10 pp acima do observado em junho de 2016, e em níveis comparáveis com os observados a nível da União Europeia.[9]
De salientar que a informação pública disponível de algumas das principais instituições sugere a continuação da tendência de redução do stock de NPL.
A evolução observada reflete a adoção de uma estratégia de redução de ativos não produtivos assente em três pilares interdependentes e complementares[10]:
- revisão do enquadramento legal, judicial e fiscal;
- ação de supervisão microprudencial; e
- gestão ativa dos portfolios de NPL por parte das instituições.
Esta estratégia foi desenvolvida tendo em atenção a heterogeneidade que caracteriza o stock de NPL dos bancos portugueses – grande parte dos quais está associada a empresas de diferente dimensão, setor de atividade e viabilidade económico-financeira.
De salientar ainda neste contexto:
- a criação por parte de um conjunto de bancos da Plataforma de Negociação Integrada de Créditos Bancários (PNCB), que, embora não envolva uma transferência de ativos para fora do balanço dos bancos, visa aumentar a eficácia e celeridade nos processos de reestruturação de empresas que estejam expostas a pelo menos dois desses bancos; e
- as alterações legislativas do ‘Programa Capitalizar’, como potenciadoras das condições do mercado secundário de NPL em Portugal.
O reforço da solvabilidade dos principais bancos, a melhoria da atividade económica e a evolução dos preços no mercado imobiliário têm também criado um contexto favorável para a redução dos ativos não produtivos.
4. Não obstante o progresso assinalável que se está a alcançar (evitando a intervenção/ajuda direta do Estado), o nível de NPL das instituições nacionais continua a ser significativo e a comparar desfavoravelmente no contexto europeu.
Assim, é necessário que as instituições de crédito prossigam com a redução dos seus ativos não produtivos, em linha com os planos submetidos às autoridades de supervisão.
É, igualmente, crucial que reforcem as suas capacidades de molde a acomodar um eventual agravamento das exigências de supervisão e prudenciais, atento o contínuo enfoque dos stakeholders relevantes (como a EBA, a Comissão Europeia e o Mecanismo Único de Supervisão) na temática dos ativos não produtivos.
Tal objetivo é ainda mais relevante se tivermos em conta que, perante um abrandamento da economia, conjugado com a relação positiva entre o ciclo económico e a redução do fluxo de imparidades, o progresso registado em relação ao saldo de NPL poderá alterar a tendência registada.
Assim, importa conciliar os objetivos dos diferentes intervenientes procurando salvaguardar a estabilidade financeira, manter a tendência de redução do stock de NPL e garantir que a destruição de valor inerente é justificável, por forma a mitigar o impacto na economia.
Concluiria salientando que a redução dos ativos não produtivos gerará naturalmente maior confiança sobre a robustez dos balanços, sobre a rendibilidade e sobre a sustentabilidade das instituições de crédito, contribuindo para uma melhoria da sua valorização pelos mercados.
Neste sentido, espero que as Jornadas de hoje sejam um valioso contributo para densificar a visão partilhada de que necessitamos sobre os desafios e as oportunidades com que nos defrontamos.
Muito obrigada.