Senhora Presidente da COFMA,
Senhoras e Senhores Deputados, muito boa tarde.
Agradeço o convite que me foi dirigido para debater convosco questões relacionadas com o endividamento das famílias. Permitam-me algumas palavras introdutórias.
Em primeiro lugar gostaria de sublinhar que considero que o tema que nos traz hoje aqui não deve ser analisado de forma isolada e estática. Ele requer uma abordagem abrangente e dinâmica, que perspetive o endividamento das famílias em paralelo com a trajetória da poupança e a afetação intertemporal dessa poupança no contexto global da economia portuguesa e da área do euro.
Se nos focarmos apenas na análise pontual dos níveis de endividamento e não redirecionarmos a nossa reflexão para uma visão mais ampla e intertemporal, perderemos de vista aspetos fundamentais como a gestão do rendimento ao longo da vida, a finalidade do endividamento, a afetação da poupança, ou mesmo questões relativas à organização dos mercados, designadamente do imobiliário.
Importa desde logo ter presente que o endividamento dos particulares não é indiferente para a trajetória de crescimento do produto potencial da economia. Como tive ocasião de sublinhar na audição sobre sustentabilidade da dívida, níveis elevados de endividamento das famílias e dos outros setores da economia traduzem-se geralmente num crescimento económico mais lento e mais volátil. Crescimento económico, estabilidade financeira e endividamento sustentável são conceitos indissociáveis.
Embora o rácio de endividamento das famílias portuguesas, em percentagem do rendimento disponível, tenha vindo a diminuir desde 2010, ele permanece ainda acima da média da área do euro, constituindo um elemento de vulnerabilidade da economia, em especial num quadro de expectativas de abrandamento da atividade económica global. A persistência de baixas taxas de poupança intensifica essa vulnerabilidade. A taxa de poupança dos particulares situa-se claramente abaixo da média da área do euro e voltou a reduzir-se no primeiro semestre de 2018.
Porém, quer o endividamento quer a poupança não devem ser perspetivados apenas em termos do seu nível ou da sua evolução recente. Devemos colocar, nomeadamente, dois conjuntos de questões:
- Quem são as famílias que se endividam e com que finalidade o fazem? Será esse endividamento sustentável?
- Quais são os fatores que determinam os comportamentos de poupança das famílias? Qual a afetação dessa poupança?
A procura de resposta a estas questões ajudará a uma melhor compreensão das dinâmicas do endividamento e da poupança, permitindo retirar ilações e atuar em conformidade.
No cumprimento da sua missão de salvaguarda da estabilidade do sistema financeiro, o Banco de Portugal monitoriza a evolução do crédito à economia e do endividamento dos agentes económicos. Em resultado desse acompanhamento tem tomado medidas no âmbito das suas competências em matéria de supervisão microprudencial, macroprudencial e comportamental.
Exemplo desta atuação é a medida macroprudencial anunciada em fevereiro de 2018 e dirigida aos novos contratos de crédito às famílias concedidos a partir de 1 de julho. Através desta medida – sob a forma de Recomendação – o Banco de Portugal procurou atuar de forma preventiva de modo a garantir:
- por um lado, que as instituições de crédito e sociedades financeiras adotam critérios prudentes e não assumem riscos excessivos na concessão de novo crédito, contribuindo para a resiliência do setor financeiro e,
- por outro, que os mutuários têm acesso a financiamento sustentável, minimizando o risco de incumprimento.
Procurou-se, assim, assegurar que as atuais dinâmicas de crédito às famílias não comprometam a redução do rácio de endividamento dos particulares e não promovam a acumulação de risco excessivo no balanço dos bancos, bem como uma afetação demasiado elevada de recursos da economia ao setor imobiliário.
Refira-se que, em comparação com os restantes países da área do euro, as famílias portuguesas têm maiores rácios do serviço da dívida e do montante da dívida no rendimento, mas, na maioria das classes de rendimento, um menor rácio da dívida face aos ativos. Esta situação resulta designadamente do facto de em Portugal, uma maior percentagem de famílias ser proprietária de imóveis e de financiar a respetiva aquisição através do recurso ao crédito. Em contrapartida existe uma menor participação das famílias portuguesas em ações, obrigações ou fundos de investimento e em planos voluntários de pensões.
Portugal é, efetivamente, dos países europeus onde os “ativos não produtivos” na posse das famílias – imóveis (excluindo os utilizados para habitação própria, para arrendamento ou para atividades empresariais pelos proprietários) e outros bens de valor – têm um maior peso na sua riqueza total (cerca de 20% face a cerca de 10% na área do euro). O debate sobre o endividamento das famílias não pode deixar de levar em conta esta realidade.
Para além do nível de endividamento, a análise a desenvolver deve também levar em conta as caraterísticas daqueles que se endividam (por exemplo por escalões etários e de rendimento). A existência de rácios de endividamento mais elevados nas famílias mais jovens reflete o facto de a dívida ser um instrumento importante para o alisamento intertemporal do consumo ao longo da vida (ou seja, em períodos da vida tipicamente de menor rendimento, os indivíduos podem financiar o consumo contraíndo dívida). A identificação das características das famílias associadas a uma maior probabilidade de incumprimento, por exemplo, assume grande relevância para monitorizar as perspetivas de evolução do risco de crédito e as suas consequências para a estabilidade do sistema financeiro.
Importa pois ter presente que o endividamento não é um problema de per si. De facto, o recurso a endividamento por parte dos agentes económicos poderá ser a forma adequada de agir, numa perspetiva intertemporal, nomeadamente se esse endividamento corresponder a uma fase de um plano intertemporal de geração e aplicação de poupança que assegure a sustentabilidade da dívida e a solvência desse agente.
Em geral, são vários os fatores que determinam e condicionam o comportamento da poupança das famílias. A poupança por motivo precaução – para fazer face a acontecimentos inesperados – assume uma importância primordial para todas as famílias, mas podemos identificar outros fatores cuja relevância é maior em algumas classes etárias:
- Nos mais novos, a “compra de casa” ou as “viagens e férias”;
- Nas idades mais avançadas, a constituição de “provisões para a velhice” e para “heranças”;
- Nas idades intermédias, a “educação” e o “pagamento de dívidas”.
Isto significa que as decisões de poupança e de endividamento dos indivíduos e das famílias visam fazer face à volatilidade do rendimento de forma a alcançar um consumo próximo do desejado ao longo da vida. Dado que o rendimento tende a aumentar ao longo da vida ativa, as taxas de poupança mais reduzidas nos mais jovens estão de acordo com o alisamento intertemporal do consumo previsto na teoria do ciclo de vida.
A poupança é também reflexo dos incentivos que decorrem do quadro institucional e regulamentar existente.
Em suma, os fatores subjacentes aos comportamentos de poupança e a afetação da poupança gerada devem constituir elementos-chave do debate sobre o endividamento das famílias.
Portugal regista uma insuficiência crónica de poupança face às necessidades de capital da economia portuguesa, comparando negativamente com os seus parceiros da área do euro, quer no que se refere às taxas de poupança dos particulares quer das sociedades não financeiras. Para que seja possível financiar de um modo sustentável um aumento do stock de capital da economia será necessário alcançar um aumento da poupança.
Para além de contribuir para um diagnóstico correto e factual da realidade do endividamento das famílias, o debate sobre este tema deve ajudar a promover uma reflexão mais ampla sobre a geração e a afetação de poupança, bem como sobre as possíveis vias de atuação para combater a sua insuficiência crónica.
Estou disponível para esclarecer as questões que os Senhores Deputados entendam colocar.
Muito obrigado.